Mazelas da cidade que tem o pior IDH do país.
Foram dez dias exatos. Durante esse período o pequeno Lucas, com menos de um ano de idade, começou a sentir no corpo o que é ser um dos novos moradores do município de Melgaço, no arquipélago do Marajó. Dez dias de febres intensas, vômitos e diarreia que resultaram na rápida e acentuada perda de peso que a mãe, Shirla não sabe explicar “Ele era gordinho”, atesta, olhando para o filho e a quantidade de remédios que ele precisa tomar para se recuperar.
“Eu chegava no hospital com ele chorando de dor e davam plasil pra ele. Quando passava o efeito voltava tudo de novo”, conta Shirla.
Tanto Shirla, 23, como o marido Rubinaldo, dez anos mais velho, sabem a origem do mal que afeta Lucas. É a água amarela consumida por eles. Como praticamente toda a população de Melgaço, Shirla, Rubinaldo e Lucas não têm acesso a serviços de saneamento. A água consumida é extraída de um furo feito no cano de água que passa em frente à palafita onde a família mora. Mesmo assim, ela só chega nas primeiras horas da manhã.
“Eu guardo a água no casco de uma geladeira velha”, diz Rubinaldo. Para minimizar a má qualidade do líquido, ele usa o cloro. Mesmo assim, os problemas resultantes disso afetam a família inteira. “Minha outra filha teve hepatite e tenho certeza que foi essa água que fez isso a ela”, diz Shirla.
Ausência de saneamento, falta de água potável, dificuldades na educação e poucas possibilidades de emprego são alguns dos fatores que empurraram Melgaço para a última posição entre os municípios do país quando se fala em desenvolvimento humano. Foi o que atestou o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), num levantamento contido no “Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013”, divulgado na última segunda-feira, 29.
O índice leva em conta dados dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em três dimensões: educação, saúde (expectativa de vida) e renda. A escala varia de 0 a 1 (quanto mais próximo do 1, mais desenvolvido) e está dividida em cinco faixas (de muito baixo a muito alto desenvolvimento). Com uma população de quase 25 mil habitantes, a maior parte vivendo em área rural, principalmente ilhas, Melgaço ficou na última posição, com 0,418.
A divulgação do resultado mexeu com os brios dos moradores do município que passaram a semana realizando passeatas de protesto, direcionadas principalmente ao atual prefeito Adiel Moura. “Nós estamos vivendo uma calamidade pública e temos de dar um basta nisso”, reclama a comerciante Valmina Farias, 34 anos, uma das principais lideranças dos protestos em Melgaço.
O foco principal é a Saúde. Nela reside a maior parte das reclamações dos moradores. Falta de médicos, ausência de remédios e material e sucateamento do hospital e unidades de saúde estão entre as principais queixas de quem precisa usar os serviços. Tanto que na passeata de quinta-feira, os manifestantes fizeram doações simbólicas de medicamento à porta do hospital.
Para conseguir consulta, por exemplo, é preciso madrugar. São apenas dez senhas diárias, o que gera situações complicadas para quem necessita de atendimento. Na sexta-feira Maria dos Santos Damasceno, 53 anos, enrolou um lençol no corpo magro e foi tentar obter mais uma vez a senha de consulta. Chegou à Unidade de Saúde às 2h da manhã, sem ter tomado café. Há dois meses ela tenta receber os resultados de uma série de exames. Como não consegue a senha, fica sem saber a origem das dores nas costas e no peito que a impedem de fazer movimentos mais bruscos ou carregar peso.
Jercinei Pereira entende o drama vivido por Maria Damasceno. Como ela, Jercinei também havia chegado cedo para conseguir uma senha. Desde janeiro ela tenta. É o resultado dos exames da filha Alessandra, de 11 anos, possivelmente com uma hérnia que a faz chorar de dor, segundo a mãe. “Mas aqui vive lotado e não tem senha pra todo mundo”, diz.
No hospital da cidade, os profissionais de saúde precisam conviver com a falta de estrutura adequada. As denúncias surgem, mas ocultas por medo de represálias. Foi o que fez uma funcionária do hospital pedir emprestada a casa de uma amiga para falar ao DIÁRIO. Ela não queria que a equipe de reportagem fosse vista entrando na casa dela. O relato dela, no entanto, dimensiona bem o problema.
“Não temos medicamentos, nem material para exames de laboratório. O paciente volta de mãos vazias. A água que bebemos vem de uma caixa d’água sem tampa, onde urubus pousam. Tem uma ala que fede por conta de esgotos entupidos”, diz ela.
O hospital de Melgaço atende em média 30 pacientes em caso de emergência e entre 15 e 25 pessoas para internação, embora possua apenas 15 leitos. São seis enfermeiros, 22 técnicos e um médico que passa 15 dias no município.
A maioria dos casos atendidos são de vômito, febre e diarreia, ou seja, doenças causadas pela ausência de saneamento básico. É a realidade vivida pela família de Edilene Ferreira dos Santos, 28 anos. Na casa dela, a água vem sempre amarelada e também fica armazenada num casco de geladeira velha. Os quatro filhos sofrem. Têm coceiras na pele e constantemente são acometidos por diarreias. “Nós sofremos muito. Eu já caí na vala aí carregando balde de água e meus meninos tudo adoece por conta da água”, diz.
Um dos filhos, Brunilson, oito anos, volta e meia chega da escola reclamando de algo que se tornou comum, a falta de merenda. “Tem dia que não tem”, diz ele. “Aí ele vem reclamando de dor no estômago. É a fome”, complementa a mãe.
Vizinha a Edilene, Aida Oliveira reclama da falta de remédios. Ela exibe uma coleção de receitas médicas. Como no próprio hospital os medicamentos são inexistentes ela precisa comprá-los, mas sem dinheiro para isso, vai guardando as receitas. Para ela, filhos e netos.
Não ter remédios ou material adequado podem levar a situações quase extremas, como a do carpinteiro Manuel de Jesus Alves, 56 anos. Ele teve o pé furado por um prego. Foi e voltou do hospital duas vezes. Até que o ferimento infeccionou além da conta e ele foi levado de ambulância para ser internado.
A mulher dele, Maria Helena, é agente comunitária de Saúde e soube do acidente com o marido alguns dias depois. Voltou às pressas para o centro de Melgaço. Helena convive cotidianamente com a precariedade dos serviços de saúde. “No interior é pior. Não tem acompanhamento de enfermeiro e médico e há três anos o barco da saúde, que fazia visitas semestrais nas comunidades, deixou de operar. Nas ilhas tem muita criança com diarreia e gripe, mas eu não posso fazer quase nada até porque não posso passar medicação”, diz ela.
De fato, apesar das mazelas vividas pelo município, Melgaço teve avanços. Em 1991, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) era 0, 177. A mortalidade infantil, de crianças com menos de um ano, passou de 77,1 por mil nascidos vivos em 1999 para 22,4 por mil nascidos vivos em 2010. A taxa do Estado do Pará é de 20,3 por mil nascidos, e a do Brasil, 16,7 mil.
“E se a parcela de analfabetos, quase a metade da população ainda é alta, a concentração é entre os mais velhos, principalmente os que moram nas ilhas mais distantes”, diz ela. Mesmo assim, alguns avanços foram vistos. O percentual de pessoas com 18 anos ou mais que tinham o ensino fundamental completo saltou de 1,8% em 1991 para 12,34% em 2010.
Mesmo assim, sobram reclamações no setor educacional. “Não é nenhuma maravilha”, diz Sandro Souza, professor que entrou na Justiça para reaver horas aula subtraídas dele por conta de fazer denúncias contra a situação educacional. “Tem perseguição”, resume.
As denúncias são feitas de forma anônima. No hotel onde a equipe do DIÁRIO estava hospedada, foi entregue um CD com fotos de uma escola municipal localizada no rio Tapajuru. No disco, imagens de uma escola com assoalho velho de madeira, cobertura de palha e estrutura deficiente para o ensino e aprendizagem.
Uma das armas para manter a população jovem na escola é o Bolsa Família. Sem a presença escolar, o benefício é cortado. Atualmente, mais de 3 mil famílias recebem essa ajuda em Melgaço.
SUPORTES
É um dos principais suportes financeiros do município. Além da economia do ‘contracheque’ municipal, o que mais movimenta as finanças de Melgaço são as bolsas. Há famílias que recebem seguro-defeso, bolsa verde, bolsa família, entre outros benefícios. Como não há muitas possibilidades de emprego formal, é esse dinheiro que circula no município.
As reclamações municipais, no entanto, recaem para o governo do Estado. “Não temos investimentos estaduais em Melgaço. O nosso porto funciona precariamente porque não foi construído de forma adequada. Se o porto não é bom, ninguém vai ter coragem de investir aqui”, diz a coordenadora.
Enquanto as soluções não chegam Melgaço segue com números vergonhosos e comparações nada edificantes. No Wikipedia, por exemplo, se diz que é o município mais atrasado do país e com índices comparáveis aos mais desassistidos países africanos. A conclusão é que não só Honduras, mas Etiópia, Zimbábue e Ruanda são aqui, no estado do Pará.
O prefeito do município não se encontrava em Melgaço para responer aos questionamentos da reportagem. Em entrevista ao DOl na última terça-feira, Adiel Moura disse que agora é preciso trabalhar e correr atrás de recursos para melhorar o quadro da educação e saúde municipal.
O prefeito disse ainda que além da falta de recursos, a localização geográfica do município também dificulta a educação das crianças que moram na beira do rio e precisam se deslocar para a cidade. “Muitos que estão na faixa etária de 15 a 20 anos largam os estudos para ingressar no mercado de trabalho, ou até mesmo na pesca e na lavoura, já que suas famílias são de baixa renda e precisam ter um emprego para se sustentar”, disse.